quinta-feira, 3 de janeiro de 2008





2 . O SANGUE DERRAMADO

Ah ! Nâo quero vê-lo !

À lua dize que venha,
que não quero ver o sangue
de Ignácio por sobre a areia.

Ah! Não quero vê-lo !

A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas
e a praça cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.

Ah ! Não quero vê-lo !

Que se me queima a lembrança.
Aviso dai aos jasmins
com sua alvura pequena !

Ah ! Não quero vê-lo !

A vaca do velho mundo
passava a língua tristonha
sobre um focinho de sangues
derramado sobre a areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.
Não.
Ah ! Não quero vê-lo !

Pelos degráus sobe Ignácio
com sua morte toda às costas.
PROCURAVA O AMANHECER
E O AMANHECER NÃO ERA.
BUSCA SEU PERFIL SEGURO,
E O SONHO O DESORIENTA.
BUSCAVA SEU BELO CORPO
E ENCONTROU SEU SANGUE ABERTO.
Que o veja não me digais !
Não quero sentir o jorro
cada vez com menos força:
esse jorro que ilumina
os palanques e se verte
sobre a pelúcia e o couro
de multidão sequiosa.
Quem grita que eu apareça ?
Que o veja não me digais !

Não se fecharam seus olhos
quando viu os chifres perto,
porém as terríveis mães
a cabeça levantaram.
E através das manadas,
um ar de vozes secretas
gritava a touros celestes,
maiorais de névoa pálida.
NÃO HOUVE PRÍNCIPE EM SEVILHA
QUE COMPARAR-SE-LHE POSSA,
nem espada qual sua espada
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
sua força potentosa
e como um torso de mármore
sua marcada prudência.
Um tom de Roma andaluza
lhe dourava a cabeça,
onde seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.
Que grão toureiro na praça !
Que grão serrano na serra !
Quão brando com as espigas !
Quão duro com as esporas !
Quão terno com o rocío !
Quão deslumbrante na feira !
Quão tremendo com as últimas
bandeirilhas tenebrosas !

PORÉM JÁ DORME SEM FIM.
JÁ OS MUSGOS E JÁ A ERVA
ABREM COM DEDOS SEGUROS
A FLOR DE SUA CAVEIRA.
E a cantar já vem seu sangue :
cantando por marismas e planícies,
resvalando por chifres regelados,
vacilando sem alma pela névoa,
tropeçando com cascos aos milhares
como uma longa, escura,triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir de astros celestes.
Oh ! branco muro de Espanha !
Oh ! negro touro de mágoa !
Oh ! sangue duro de Ignácio !
Rouxinol de suas veias !
Não !
Ah ! não quero vê-lo !
NÃO HÁ CÁLICE QUE O CONTENHA,
NEM ANDORINHAS QUE O BEBAM,
NEM GELO DE LUZ QUE O GELE,
NÃO HÁ CANTO OU DILÚVIO DE AÇUCENAS
NÃO HÁ CRISTAL A COBRÍ-LO DE PRATA.
NÃO.
NÃO QUERO VÊ-LO !!!

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