quinta-feira, 3 de janeiro de 2008


ADEUS KAKÁ - A(PARA) DEUS KAKÁ


CARLOS ALBERTO DE ARAÚJO


" A alma chega ao final de sua longa jornada e, nua e só, aproxima-se do Divino ".

Hieronymus Bosch


KAKÁ AGORA ESTÁ COM DEUS

*19.04.1960 +30.12.2007

Na luminosa tarde deste domingo, 30.12.2007, se encantou Carlos Alberto de Araújo, dando o grande abraço no Infinito, depois de um acidente de moto aqui em Pesqueira.

Meu amigo, meu professor de Ioga ( 3 vezes por semana ), meu terapeuta corporal ( 1 hora de massagem Shiatsu todo sábado de manhã ), KAKÁ, uma das inteligências mais brilhantes que já conheci, também era psicólogo e atendia dezenas de crianças abusadas, adolescentes viciados,etc.

Vai ficar um grande vazio na vida de muitos.

Mas, quem somos nós para questionar o destino ?

Por trás do seu humor cáustico, havia um meninão carente e cheio de alegria.

Vai com Deus e para Deus, Kaká.

Aqui embaixo fica tua saudade e teu belo trabalho, que marcou tantos.

Um grande abraço em ti e em TÍ ( Deus )."

Abaixo um dos últimos emails que me mandou :

José Carlos:
Para mim está sendo muito gratificante participar de seu processo de cura.Quando eu estava no Convento gostava de cantar um hino que dizia " Deus não tem mãos, ele só pode agir usando as suas"...lembrei dele ao ler seu e-mail.Sinto que vc conseguiu realizar a alquimia do limão azedo e já está saboreando essa limonada chamada adoecer. Estar doente é antes de tudo ESTAR SOB O DOMÍNIO DO ENTE. Uma das coisas boas que aprendí com doença foi a revelação de grandes amigos, as amizades superficiais são alérgicas à dor e ao sofrimento. Acredito também que nosso amadurecimento começa no dia em que olhamos para a cara da morte e ,como dizia Cazuza, percebemos que ela está VIVA. È essa consciência do provisório que nos proporciona o êxtase da eternidade!! Abraços . Kaká


PS : A fotografia foi tirada por Sandra, diretora da Academia Forma e Saúde, há poucos dias atrás, para o calendário dos professores da Academia.

Se alguém queira colocar comentários e tiver dificuldade, mande para meu email, que postarei. josecarlos@pesqueira.com.br



Pranto por Ignacio Sánchez Mejías

Inácio Sanches Mejías era um jovem, grande toureiro espanhol, amigo do poeta Federico Garcia Lorca. Ignácio foi ferido por um touro na coxa e morreu poucos dias depois de gangrena, em terrível agonia.
O sepultamento de Kaká também foi às 5 horas da tarde e não me saía da cabeça este poema, dividido em 4 partes.

PRANTO POR INÁCIO SANCHEZ MEJÍAS
1935. Federico Garcia Lorca


1 . A CAPTURA E A MORTE


Eram cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Um cesto de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e somente morte,
às cinco horas da tarde.

O vento arrebatou os algodões,
às cinco horas da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
às cinco horas da tarde.
Já pelejam a pomba e o leopardo,
às cinco horas da tarde.
E uma coxa por um chifre destruída
às cinco horas da tarde.
Os sons já começaram do bordão
às cinco horas da tarde.
As campanas de arsênico e a fumaça
às cinco horas da tarde.
Pelas esquinas grupos de silêncio
às cinco horas da tarde.
E touro todo coração ao alto
ás cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
às cinco horas da tarde,
quando a praça se cobriu de iodo
às cinco horas da tarde,
a morte botou ovos na ferida
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Às cinco em ponto da tarde.

Um ataúde com rodas é a cama
às cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam em seus ouvidos
às cinco horas da tarde.
O touro já mugia por sua frente
às cinco horas da tarde.
O quarto se irisava de agonia
às cinco horas da tarde.
A gangrena de longe já se acerca
às cinco horas da tarde.
Trompa de lis pelas virilhas verdes
às cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sóis
às cinco horas da tarde,
e as pessoas quebravam as janelas
às cinco horas da tarde.

Às cinco horas da tarde.
AI QUE TERRÍVEIS CINCO HORAS DA TARDE !
ERAM AS CINCO EM TODOS OS RELÓGIOS !
ERAM AS CINCO HORAS DA TARDE EM SOMBRA !





2 . O SANGUE DERRAMADO

Ah ! Nâo quero vê-lo !

À lua dize que venha,
que não quero ver o sangue
de Ignácio por sobre a areia.

Ah! Não quero vê-lo !

A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas
e a praça cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.

Ah ! Não quero vê-lo !

Que se me queima a lembrança.
Aviso dai aos jasmins
com sua alvura pequena !

Ah ! Não quero vê-lo !

A vaca do velho mundo
passava a língua tristonha
sobre um focinho de sangues
derramado sobre a areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.
Não.
Ah ! Não quero vê-lo !

Pelos degráus sobe Ignácio
com sua morte toda às costas.
PROCURAVA O AMANHECER
E O AMANHECER NÃO ERA.
BUSCA SEU PERFIL SEGURO,
E O SONHO O DESORIENTA.
BUSCAVA SEU BELO CORPO
E ENCONTROU SEU SANGUE ABERTO.
Que o veja não me digais !
Não quero sentir o jorro
cada vez com menos força:
esse jorro que ilumina
os palanques e se verte
sobre a pelúcia e o couro
de multidão sequiosa.
Quem grita que eu apareça ?
Que o veja não me digais !

Não se fecharam seus olhos
quando viu os chifres perto,
porém as terríveis mães
a cabeça levantaram.
E através das manadas,
um ar de vozes secretas
gritava a touros celestes,
maiorais de névoa pálida.
NÃO HOUVE PRÍNCIPE EM SEVILHA
QUE COMPARAR-SE-LHE POSSA,
nem espada qual sua espada
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
sua força potentosa
e como um torso de mármore
sua marcada prudência.
Um tom de Roma andaluza
lhe dourava a cabeça,
onde seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.
Que grão toureiro na praça !
Que grão serrano na serra !
Quão brando com as espigas !
Quão duro com as esporas !
Quão terno com o rocío !
Quão deslumbrante na feira !
Quão tremendo com as últimas
bandeirilhas tenebrosas !

PORÉM JÁ DORME SEM FIM.
JÁ OS MUSGOS E JÁ A ERVA
ABREM COM DEDOS SEGUROS
A FLOR DE SUA CAVEIRA.
E a cantar já vem seu sangue :
cantando por marismas e planícies,
resvalando por chifres regelados,
vacilando sem alma pela névoa,
tropeçando com cascos aos milhares
como uma longa, escura,triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir de astros celestes.
Oh ! branco muro de Espanha !
Oh ! negro touro de mágoa !
Oh ! sangue duro de Ignácio !
Rouxinol de suas veias !
Não !
Ah ! não quero vê-lo !
NÃO HÁ CÁLICE QUE O CONTENHA,
NEM ANDORINHAS QUE O BEBAM,
NEM GELO DE LUZ QUE O GELE,
NÃO HÁ CANTO OU DILÚVIO DE AÇUCENAS
NÃO HÁ CRISTAL A COBRÍ-LO DE PRATA.
NÃO.
NÃO QUERO VÊ-LO !!!



3. O C O R P O P R E S E N T E

A pedra é uma fronte onde se queixam os sonhos,
sem que tenha água curva sem ciprestes gelados.
A pedra é uma espádua para levar ao tempo
com árvores e lágrimas, cintas e planetas.

Eu vi chuvas cinzentas correndo para as ondas
levantando seus ternos braços esburacados,
para não ser caçadas pela pedra estendida
que desfaz os seus membros sem se empapar de sangue.

Porque a pedra recolher sementes e nublados,
ossadas de calhandras e lobos de penumbras;
mas não produz ressonâncias , nem cristais, nem fogo,
senão praças e praças e outras praças sem muros.

Já sobre a pedra repousa Ignácio, o bem nascido.
Já se acabou : que se passa ? O rosto contemplai-lhe :
de pálidos enxofres a morte o recobriu
e a cabeça compôs-lhe de escuro minotauro.

Já se acabou. A chuva penetra-lhe a boca.
De seu peito afundado foge o ar como louco
e o Amor, empapado de lágrimas de neve,
aquecer-se procura no cimo dos currais.

Que dizem ? Um silêncio com fedores repouso.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara onde rouxinóis havia
e vemo-la crivar-se de buracos sem fundo.

Quem o sudário enruga ? É mentira o que diz !
Aqui não há quem cante, nem chore lá no canto,
quem pique das esporas ou espante a serpente :
aqui não quero ter mais do que os olhos redondos
a fim desse corpo ver serm possível descanso.

AQUI EU QUERO VER OS HOMENS DE VOZ DURA,
OS QUE DOMAM CAVALOS E DOMINAM OS RIOS ;
os homens cuja ossada ressoa e também cantam
com boca toda cheia de sol e pedernais.

AQUI EU QUERO VÊ-LOS. BEM DEFRONTE DA PEDRA.
DIANTE DESSE CORPO COM AS RÉDEAS PARTIDAS.

EU QUERO QUE ALGUÉM ME DIGA ONDE ESTÁ A SAÍDA
PARA ESTE CAPITÃO ATADO PELA MORTE.

Eu quero que me mostrem um pranto como um rio
que tenha doces névoas e praias insodáveis,
para levar o corpo de Ignácio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.

Que se perca da lua na praça arredondada
que finge ao ser menina dolente rês imóvel ;
que se perca na noite sem cantares dos peixes
e na maleza branca do fumo congelado.

NÃO QUERO QUE LHE TAPEM O ROSTO COM LENCINHOS
PARA QUE SE ACOSTUME COM A MORTE QUE LEVA.
VAI-TE IGNÁCIO : NÃO OUÇAS O CANDENTE BRAMIDO.
DORME, VOA, REPOUSA... ASSIM TAMBÉM MORRE O MAR.



4. A ALMA AUSENTE

Não te conhecem a figueira e o touro,
nem de teu lar formigas e cavalos.
Nem a tarde e o menino te conhecem
porque morreste para todo o sempre.

Nem o lombo da pedra te conhece,
nem o negro cetim em que te esbanjas.
Não te conhece teu recordo mudo
porque morreste para todo o sempre.

O outono chegará com caracóis,
uva de neve e montes agrupados,
mas ninguém quererá mirar teus olhos
porque morreste para todo o sempre.

Porque morreste para todo o sempre,
como todos os que na Terra morrem,
como todos os mortos que se olvidam
ou um montão de perros apagados.

Ninguém te conhece. Não. Porém te entôo um canto.
EU CANTO SEM DEMORA TEU PERFIL E TUA GRAÇA.
A MADUREZA RARA DO TEU CONHECIMENTO.
TUA AVIDEZ DE MORTE E DE SUA BOCA O GOSTO.
A TRISTEZA QUE TEVE TUA VALENTE ALEGRIA.

TARDARÁ MUITO TEMPO A NASCER, SE É QUE NASCE,
UM ANDALUZ TÃO CLARO, TÃO RICO DE AVENTURA.
Canto-lhe a elegância com palavras que gemem
e recordo uma brisa triste nos olivais.


F I M